Quem mexeu no meu currículo?

Um cafeicultor amigo meu expôs seu principal problema: falta de profissionais. Em pleno período da colheita, não há pessoas dispostas e preparadas para a atividade. Quando consegue admitir alguém, ele ainda precisa lidar com a pouca produtividade trazida pela ausência de preparo e disposição. Por fim, disse que o custo do trabalhador aumentou significativamente nos últimos anos.

O caso relatado é idêntico ao vivido por milhares de empresas prestadoras de serviços contábeis, fiscais, tributários e tecnológicos. A segunda década do século 21, que se iniciou neste ano, já deixou claro a gestores e empreendedores, que estamos no meio de um apagão de mão de obra – ou “apagão intelectual” como prefiro dizer.

Para o mercado contábil, há ainda como agravante o fato de a interdisciplinariedade ter se tornado um verdadeiro pré-requisito. O perfil mínimo, no mundo Pós-SPED, demanda conhecimentos contábeis, tecnológicos, fiscais, gerenciais e jurídicos, algo muito além das “desejadas” habilidades de liderança, relacionamento e comunicação.

Assim, estamos vivendo um momento paradoxal: o mercado precisando de profissionais de Terceiro Milênio, e estes tendo sua formação estruturada a partir de um modelo fordista, do século passado.

Só para relembrar, Henry Ford aplicou os princípios da administração científica de Taylor e Fayol em sua empresa e revolucionou o mundo. Temos produtos em nossas casas graças à implantação de três paradigmas fundamentais dessa escola:

  • linha de produção com a micro divisão de atividades
  • adestramento da mão de obra para a execução de tarefas simples
  • controle dos “tempos e movimentos” em busca de maior produtividade

Em outras palavras, uma estrutura organizacional hierárquica na qual há uma turma que manda (e pensa), outra que obedece (e vigia) uma terceira, com juízo suficiente para executar tudo isto.

Tal modelo ainda hoje é adotado por praticamente todas as empresas e instituições de ensino brasileiras, inclusive as entidades reguladoras da Educação. O fato é que as linhas de produção de adestramento são insuficientes para ajudar na formação de profissionais do século 21.

As provas disto saltam aos olhos. Uma das mais contundentes dos últimos tempos é o altíssimo índice de reprovação do Exame de Suficiência do CFC, que chegou a 69,17%. Acredito que, se houvesse outros exames para demais áreas de conhecimento, o resultado não seria muito diferente.

Para complicar ainda mais a situação, há um enorme contingente de analfabetos “funcionais” digitais em nosso país. Pessoas que até sabem “usar o computador”. Enviam e-mails, escrevem textos e até mesmo produzem planilhas, mas ainda raciocinam segundo o paradigma industrial.

Muitos destes “analfabetos funcionais digitais” têm seus currículos impecáveis, bem redigidos e diagramados, perfeitos para qualquer processo de seleção.

O problema é que a trajetória profissional na atualidade se avalia de outra forma: na grande rede, a Internet, ao longo de seus inúmeros grupos de discussão, fóruns, blogs, microblogs, comunidades, redes sociais e afins.

E muita gente tem vinculado a sua vida a participações pouco edificantes, e que não poderão ser apagadas da memória pública digital. Então, este é o ponto de inflexão na história. As organizações, tampouco as pessoas, têm como fechar os olhos para esta enorme transformação planetária.

Instituições e profissionais terão que mexer em seus currículos. As primeiras, destruindo o conceito de “estrutura curricular”, tão conforme com os padrões fordistas, e tomar a iniciativa de criar uma formação mais holística, socrática, enfim, realmente 2.0.

Os segundos, abandonando o conceito de “currículo digitalizado”, como se este fosse apenas uma cópia, digamos, bonitinha da versão impressa, para adotar o verdadeiro “Curriculum Vitae Social” que, na prática, é apenas um “Resumé” de sua vida já registrada pelos mecanismos digitais. Enfim, o currículo não é redigido, mas construído ao longo da participação da pessoa na grande rede.

É a percepção de causa e efeitos (agora indeléveis) de nossas ações, vinculadas ao ecossistema digital, que nos capacitará a dar os primeiros passos em nossa infância da Sociedade do Conhecimento, com o mínimo de tropeços e seguindo, isto sim, na direção correta.

Por Roberto Dias Duarte, publicado originalmente no Estado de São Paulo